Você poderia ter tido uma família mais exclusiva ― não só dei conta de cuidar de quatro gatos como de cinco, de sete, de dez (e algumas dezenas de temporários). Geniosa, ficava na ponta mais afastada do montinho felino ou reinando exclusiva na estante do escritório, em sua almofada de joaninha ― que nos acompanhou por três mudanças, ganhou uma cestinha, um remendo à la Tim Burton e só aposentou com a cama nuvem, depois de uma tentativa fracassada de roupinha.
Em Sorocaba, escolheu a lavanderia, menos disputada, para chamar de sua. Eu achava que era por causa da estante, aquela que ficava no escritório de São Bernardo, mas você gostava mesmo é da caixa suja do aspirador de pó ― e continuou gostando aqui em Araçoiaba. Da lavanderia, da estante, da caixa suja do aspirador de pó.
Já para Guda nunca deu bola ― e ela tentou até o fim, um ano atrás. Como pode caber tanta rabugice em uma gata-anã, que pesou 2,5 kg praticamente a existência inteira (até perder 900 gramas nos dois últimos meses)? E que roubava glutadela com esta carinha. E miava feito cabrita, soltando barulhinhos onomatopeicos quando subia nas coisas, pulava no chão, percebia nosso toque, bebia água, mastigava a ração.
Aí, escolhi cuidar do Intrú, que não tinha a sorte de morar do lado de dentro da porta de vidro de alguém e resolveu montar acampamento bem do lado de fora da porta de vidro da sua lavanderia ― fiz justiça gastando a maior parte dos lencinhos umedecidos dele com você. Veio, então, a ataxia, a cistite e os sintomas respiratórios, uma possível artrose, um possível trombo, a apatia.
Eu não sabia se sentia dor ou estava só sendo
Achei que não passaria de sexta ― a do dia 29 de março! E escolhi parar a vida. Botei fraldinha, liberei o quarto para dormir, aquele em que você nunca pôde entrar porque tenho alergia a gatos, comecei a te carregar por todo o lado para garantir que não cairia. Mas você não morreu. Ficou presa em um corpinho que não funcionava direito ― hidratada, com as mucosas coradas, olhos brilhantes (os mais lindos de Gatoca), sem qualquer episódio de vômito ou diarreia.
Como não conseguia mais chegar sozinha no jardim, te ajeitei no catnip só para voltar com formigas na cabeça e uma lesma entrando na boca. Pensei em parar sua vida. Eis que você adorou o suco de maçã. De manhã, acordava com a carinha colada à minha, não importava em que posição te colocasse. E sonhava loucamente.
Escolhi continuar. E também sonhei: você encostava a testa na minha e pressionava nossas cabeças uma contra a outra com as patinhas. Parecia uma despedida. Quando um dos dentes se pôs a sangrar, escrevi ao veterinário da cidade perguntando sobre a eutanásia. Só no consultório.
Em vez do terror da viagem de carro pelas estradas de terra esburacadas, escolhi te levar no sling improvisado para um último passeio pelo bairro, que você sorveu com os faróis ainda mais gigantes, cada folha, cada bicho, cada portão ― surda há uns dois anos, os cachorros latiam no vazio.
De segunda para cá, a dúvida foi me consumindo: havia algo mais para aproveitar? Será que eu tinha passado do ponto? Nesta madrugada, você arrumou um jeito de me confortar. Ignorando quaisquer limitações neurológicas, deitou no meu peito e só percebi quando acordei pela primeira vez ― na segunda, você estava encaixada entre minhas pernas, como um pacotinho.
Partiu na sua inseparável cama nuvem (como encará-la desocupada?), enquanto ganhava um cafuné com a mão que não estava tentando responder os e-mails atrasados.
Não te dei uma família exclusiva, mas garanti 17 anos e dois meses de presença, trabalhando em casa muito antes de o home office ser moda. E uma aposentadoria entre capuchinhas e passarinhos, mudando para o interior de aluguel e tomando um golpe da empresa de contêineres.
Podem ter sido escolhas inexperientes, de gateira de primeira viagem, e desajeitadas, de quem tantas mortes depois ainda não aprendeu a perder. Mas você sabe que foram as melhores que consegui fazer, né?